sexta-feira, 22 de setembro de 2017

a perna

De papel passado e batismo fora Belmiro. Mas até voltar da tropa, papeis foram poucos e batismo fora um como era de regra, já que na altura e por aquelas bandas outra maneira não havia de oficializar a vinda à terra. À mãe soara-lhe bem na hora de o anunciar ao padre, enlevo de que cedo se lamentou. Dava trabalho, o movimento dos lábios na separação das sílabas. E de bel nada chegara a ter, de modo que cedo ficou Miro. Por preguiça, não por afeto. Porque afetos nunca o afagaram. Talvez porque tivesse um rosto que parecia madeira dura talhada a canivete, mas não há maneira de saber ao certo porque a dinâmica dos enjeitamentos é coisa de muitos caminhos.
Por via daquela abominação deu de lhe incharem as veias de rancor. De tal maneira que ainda em gaiato achou justo despejar o que sobrava de 605 forte de um frasquito das mondas no depósito da água da aldeia. Como o depósito estava cheio, a diluição ficou muito aquém da prescrita no rótulo, num exagero de insuficiência para queimaduras graves. Do dia seguinte ficou apenas a memória de uma valente diarreia coletiva, um número significativo de pessoas em vómitos e algumas dores de cabeça.
Como não se ficou por ali, foi já avançado nos quarentas que ficou debaixo de um dos pinheiros que se preparava para roubar munido de motosserra. Ficou a dizer uns ais, muito espaçados e pouco vigorosos e foi assim que deram com ele na manhã do dia seguinte. A dizer ais como quem conta batatas por enfado.
Desta desventura resultou a amputação da perna direita.

Já ia em muletas para o Ratinho, famoso de bifanas, quando o Augusto que de lá vinha avinhado lhe deu a fragatada com a furgoneta.
De volta ao hospital, desta vez para ficar entrapado da cabeça, largou-se aos berros com os gajos dos seguros, que agora nem podia jogar à bola e coisas do género. Fosse porque se apiedassem, fosse porque já o não podiam ouvir, a inquirição da peritagem ficou-se breve e pela rama. Do que resultou uma choruda indemnização pela falta da perna e outras miudezas. Enfim, não seria nada assim do outro mundo. Pouco seria em Lisboa, por exemplo, onde podia calhar com certas gajas que sabem manhas de dar sumiço ao dinheiro enquanto o diabo esfrega o olho. Mas naquela borda de Sernancelhe, que era onde ficava a sua aldeia, era maquia para lhe dar até ao fim dos dias sem mexer palha, fosse ele abençoado com algum juízo.
Mas não era o caso. E quando andou a raspar a cabeça pelo alcatrão as coisas não devem ter melhorado porque em três tempos gastou tudo em vinho, putas e tabaco.
Podia ter comprado um carrito mas precisava ter carta porque a GNR conhecia-lhe a fronha. Deu-lhe para uma famel xf. Metia as mudanças com o pé que ainda tinha e usava a mão para o travão da roda da frente. Razão porque naquela noite a roda de trás quis ultrapassar a da frente deixando o Miro atravessado na estrada, precisamente onde em tempos o Augusto lhe tinha dado a trombada.
Não se sabe há quanto tempo já ali estava a pensar na perna quando o Vítor se abeirou dele. Desconfiado com o rodilho, encostou o peugeot à berma e acendeu os intermitentes. Abriu a porta, chegou-se a medo e reconheceu a voz do Miro a resfolegar que avançasse. Sentiu-se tentado. Era tarde e a mãe já estaria em cuidados, a ponderar toda a espécie de tragédias. De maneira que acabou por lhe oferecer a mão para o arrastar para a borda. Que não. “-Avança, avança, caralho!”, dizia ele a sacudir a mão por cima das costas. Mas o Vítor era um rapazito ajuizado. Andava a estudar em Viseu, gostava de ajudar o pai e só bebia sumol de ananás.
De maneira que ficaram para ali os dois. O Vítor de cotovelos apoiados nos joelhos à maneira russa, o Miro com a boca sobre o vómito e os piscas a acender e a apagar.

Se eu fosse mais vezes ao Ratinho traria de lá muitas histórias destas sem fim à vista. Mas eu gosto é de rir violentamente. Como algumas são tristes, fico muito aqui por casa.
Já vos disse das bifanas?

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