segunda-feira, 8 de agosto de 2016

a teia


















Quando alguém deu por ela a um bordo da vila, lá para os lados de Cabeçudo, já tinha para aí uns oitocentos metros quadrados, mais coisa, menos coisa. Foi quando o pobre do Matias espetou com dois balázios nas costas do filho, ia ele a sair de casa.
Veio a GNR, fita para aqui, fita para ali, a delimitar o "perímetro da ocorrência" e as ovelhas que por lá estavam, muito espantadas com tudo aquilo, sem saber se deviam ficar do lado de dentro ou do lado de fora da fita. Foi nessa altura que o agente Cebolo deu olho num borrego a enrodilhar-se naquilo. Ficou muito indignado com a dimensão mas não passou nada para o relatório porque o borrego estava fora do perímetro e seria um despropósito muito capaz de o arrastar para escusadas chatices.
Soltou o animal, limpou como pôde as botas e as mangas da camisa e ficou caladinho.
Do silêncio do agente Cebolo foi-se estendendo por sobre as copas dos pinheiros de maneira tal que embaciava a luz quando vista do chão e se confundia com nevoeiro quando vista de um subido.
Levou ainda uma eternidade que não estou em condições de especificar em rigor até que começassem a aparecer os primeiros sinais de mal-estar e o "Comarca da Sertã" viesse a fazer primeira página inflamada com a exigência de que “as autoridades” pusessem um fim naquela “pouca vergonha” e de que o “Correio da Manhã” fez eco em página mais tímida.
Pressionado, o Dr. José Farinha – presidente da câmara eleito pelo PS, que sucedeu ao Dr. José Farinha do PSD, por morte em funções deste último -, em entrevista ao “Expresso do Pinhal”, defendeu-se das acusações de inércia alegando que "os meios são manifestamente escassos e, sobretudo, há uma importante exigência de os afetar com a maior severidade possível”. E acrescentou:

“- Ele [o defunto Dr. José Farinha, do PSD] foi, no anterior mandato, um dos responsáveis que assumiu, imperturbado do alto da sua magistratura, os avanços da teia e a instalação da desestabilização política no concelho da Sertã com a ajuda oportunista dessa terrível catástrofe natural e do governo de então, colaborando e ajudando nessa desestabilização”.

À observação da entrevistadora de que tais motivos não remediavam o caso de já ninguém saber onde estava a estátua do Padre Manuel Antunes, soterrada numa montanha de baba, o edil limitou-se a responder com alguma exaltação que tinha conhecido pessoalmente o Padre Manuel Antunes:

“- Para mim, ele deveria ser o farol da Beira!”, concluiu ele numa magnífica metáfora acerca da atual invisibilidade do cónego.

A ser justo para com o Dr. José Farinha (o vivo), a “catástrofe” sucede na Sertã mas não há uma única razão que nos autorize a supor que não podia acontecer ou esteja a acontecer neste preciso momento em qualquer outro lugar com rigorosamente as mesmas consequências.
Mas como a estátua do Padre Manuel Antunes afundada em baba de aranha fica mesmo em frente do tribunal de comarca da Sertã, nem vale a pena falar de justiça. Veja-se, por exemplo, o caso de Jorge Sousa, um reformado da Carris com 77 anos, que tem o carro parado na garagem desde o princípio do ano; o portão, os vidros, os fechos das portas, os pneus, tudo selado com aquela porcaria e “uma pessoa sujeita a ficar lá colada como um gafanhoto”. Deprimido, tinha calafetado portas e janelas, deixado de sair à rua até ao dia em que um repórter do CM o veio entrevistar para rabiscar uma breve encabeçada com o título “Teia gigante impede reformado de tirar Mercedes da garagem”.

Tudo o que ensaia movimento, patina prisão. Com a quadragésima sétima reforma do ensino promovida pelo novel ministro Tiago Farinha, todo o discente ou docente que se ache imobilizado em seda de aranha fica automaticamente dispensado de quaisquer atividades letivas. No primeiro caso e em tais circunstâncias, os alunos são “sinalizados” e resgatados pelos bombeiros. Passam depois a ser individualmente acompanhados em casa na realização das suas tarefas escolares por professor tutor não atascado em seda. Como esta última disposição não é suficientemente popular entre os alunos, os gabirus enfiam nos pés uns sacos de plástico presos com elásticos e entretém-se a rasteirar os professores que ficam colados ao chão a dar às perninhas e mãozinhas como tartarugas viradas do avesso. Como na emergência de legislar não se cuidou de dispor o que fazer com estes, ao fim de poucos dias ficam vazios por dentro, secos e estaladiços por fora, de tal maneira que acabam em pó ao mínimo piparote. Daqui resultam grandes folguedos e barrigadas de riso. De onde não sobra diferença visível no antes e no depois da teia no que se refere ao setor do ensino.

Onde realmente se notam diferenças de bocado é na atividade económica. Do Convento de Santo António - hoje pertencente ao Município, rebatizado “Sertã’s Convent Hotel” e gerido pela Dr.ª Idalina Farinha - não chegam boas notícias: alojamento catita – os hóspedes têm direito a chinelos e tudo –, estaria hoje às moscas não fosse o caso de estas últimas terem sido exterminadas em todo o conselho.
A atividade florestal ficou completamente paralisada: cortados a motosserra, os pinheiros continuam onde estavam, amarrados pelas copas na teia. No "Pingo Doce", quando um cliente mais esfomeado arranja manhas de arrancar uma lata de atum a uma prateleira e a deixa cair ao chão, já não arruma forças para a levar às caixas.
A Câmara Municipal da Sertã, que estava a lançar uma empresa pública – a “Incubadora da Sertã” (INSER) - uma “incubadora de empresas de índole social e jovem ... ainda para mais numa região muito fustigada pelo despovoamento e afastada dos principais centros de decisão”, tal como é descrita nas palavras do seu presidente, Dr. Roberto Farinha, “...está a ver esboroarem-se todas as suas sinergias”.
Não chegou a haver alívio quando os chineses da loja ao lado do “MiniPreço”, falhos de clientela, começaram a catar teia dia e noite, não se sabe muito bem para vender a quem ou porquê, assunto sobre o qual corriam as mais extravagantes teorias, sendo que a menos estapafúrdia de todas era a de que as teias eram prensadas com cola para madeira e posteriormente vendidas como calços de travões "biológicos"  para carros de luxo. Mas eram muitos quilómetros de teia para que pudesse ver-se diferença, mesmo para uma família de chineses.
No segundo “Festival de Marisco”, no já longínquo ano de 2008 e na Alameda da Carvalha, ainda havia ânimo para apresentar ao público a “maior sertã do mundo”. Neste lá vai, as coisas mudaram muito nas cabeças dos sertaginenses e já não sobra alento para tirar a teia da cabeça, deixando feridas na alma de quase todos.

Em entrevista à “Rádio Condestável”, o Dr. Arsénio Peixoto, entomologista amador e professor de Biologia do quadro do Agrupamento de Escolas da Sertã, embora declarando não ser especialista em aracnídeos – porque os seus interesses estavam mais virados para os coleópteros – procurou tranquilizar a população garantindo que a teia não era obra de uma gigantesca aranha mas de milhares de milhões de pequenas aranhas que nem sequer eram venenosas. De nada valeu.
Outro tanto tentou José Abrantes, intelectual com coluna sobre nutricionismo no “Expresso do Pinhal”, professor de yoga e uma das “forças vivas da princesa da beira”. Apesar das maneiras um pouco afetadas e a dar para o parado, fazia insistentes apelos a uma coabitação mais serena com “a catástrofe”, com tentativas de preleção acerca da “dualidade de tudo o que existe no universo”, do dia e da noite, da biodegradabilidade e das propriedades antimicrobianas das teias.
Sucede que se vestia de uma maneira esquisita – camisas de algodão cru sem colarinho, tererés, saquinha e alpargatas, tudo coisas com fraca reputação por aquelas bandas, de mais a mais num homem que já tinha idade para ter juízo. Além disso tinha a mania de se dirigir às pessoas com um “namasté” que quer dizer “olá, como estás?” em estrangeiro. Quando falava às outras “forças vivas” baixava a cabeça e juntava as mãos em cunha sobre o peito, a modos de quem reza em sinal de respeito. Ora isto, parecendo tudo muito bonito e não obstante a boa conta em que eram tidos os progenitores do Abrantes – ainda parentes do Barão de Farinha -, deixava as “forças vivas” a pensar “lá está outra vez este cagão inútil armado em superior”. E nenhumas eram as “forças” que condescendiam em o ouvir. Limitando-se nesses casos a uma curta flexão de pescoço ao dizer “namasté”, ainda esboçou algumas desmaiadas tentativas em explicar a "dualidade de tudo" junto dos mais simples e rústicos. Mas ora se assustavam, ora cuidavam que lhes queria palmar a carteira.
Seja como for, em todos os casos o tomavam por tolo com danos de entendimento.
A companheira, peluda e de mau feitio, não o tratava com mais consideração e corriam rumores de que o fazia padecer de uma certa violência doméstica. Um dia apanhou o "expresso" e hoje vive em Coimbra onde realmente o respeitam, havendo mesmo quem jure que ainda vai a reitor, e faz vida com um homem a valer que o trata bem.
Por culpa da teia e com a partida do Abrantes, a população da Sertã viu-se reduzida em 8,1%.

A única pessoa que não quis saber daquilo para nada e continuou a sua vidinha como se nada fosse foi o Simões do talho.
Continua a fazer os melhores e mais disputados maranhos em toda a Sertã.
Não sei se sabiam.






1 comentário:

  1. https://www.radiocondestavel.pt/agenda-cultural/serta-soraia-farinha-da-concerto-na-casa-da-cultura/

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